O Direito Internacional dos Direitos Humanos, como se sabe, constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo. É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.
Nesse sentido, uma das principais preocupações desse movimento foi converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional(3), o que implicou nos processos de universalização e internacionalização desses mesmos direitos. Esses processos permitiram, por sua vez, a formação de um sistema normativo internacional de proteção de direitos humanos(4), de âmbito global e regional, como também de âmbito geral e específico. Adotando o valor da primazia da pessoa humana, esses sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. A sistemática internacional, como garantia adicional de proteção, institui mecanismos de responsabilização e controle internacional, acionáveis quando o Estado se mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos e liberdades fundamentais.
Ao acolher o aparato internacional de proteção, bem como as obrigações internacionais dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional, no que se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados em seu território(5). O Estado passa, assim, a consentir no controle e na fiscalização da comunidade internacional quando, em casos de violação a direitos fundamentais, a resposta das instituições nacionais se mostra insuficiente e falha, ou, por vezes, inexistente. Enfatize-se, contudo, que a ação internacional é sempre uma ação suplementar, constituindo uma garantia adicional de proteção dos direitos humanos.
Essas transformações decorrentes do movimento de internacio-nalização dos direitos humanos contribuiram ainda para o processo de de-mocratização do próprio cenário internacional, já que, além do Estado, novos sujeitos de direito passam a participar da arena internacional, como os indivíduos(6) e as organizações não-governamentais. Os indivíduos convertem-se em sujeitos de direito internacional — tradicionalmente, uma arena em que só os Estados podiam participar. Com efeito, na medida em que guardam relação direta com os instrumentos internacionais de direitos humanos, os indivíduos passam a ser concebidos como sujeitos de direito internacional. Na condição de sujeitos de direito internacional, cabe aos indivíduos o acionamento direto de mecanismos internacionais, como é o caso da petição ou comunicação individual, mediante a qual um indivíduo, grupos de indivíduos ou, por vezes, entidades não-governamentais, podem submeter aos órgãos internacionais competentes denúncia de violação de direito enunciado em tratados internacionais. É correto afirmar, no entanto, que ainda se faz necessário democratizar determinados instrumentos e instituições internacionais(7), de modo a que possam prover um espaço participativo mais eficaz, que permita maior atuação de indivíduos e de entidades não-governamentais(8), mediante legitimação ampliada nos procedimentos e instâncias internacionais.
No caso brasileiro, o processo de incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e de seus importantes instrumentos é conseqüência do processo de democratização. O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito brasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. A partir dessa ratificação, inúmeros outros relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, dentre eles: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995.
O processo de democratização possibilitou, assim, a reinserção do Brasil na arena internacional de proteção dos direitos humanos — embora relevantes medidas ainda necessitem ser adotadas pelo Estado brasileiro para o completo alinhamento do país à causa da plena vigência dos direitos humanos. Com efeito, para que o Brasil se alinhe efetivamente à sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, relativamente aos tratados ratificados, é emergencial uma mudança radical de atitude política, de modo a que o Estado Brasileiro não mais se recuse a aceitar procedimentos que permitam acionar de forma direta e eficaz a international accountability, como a sistemática de petições individuais e comunicações interestatais, acrescida da competência jurisdicional da Corte Interamericana. Superar essa postura de recuo e retrocesso — que remonta ao período de autoritarismo — é fundamental à plena e integral proteção dos direitos humanos no âmbito nacional. Neste sentido, é prioritária ao Estado Brasileiro a revisão de declarações restritivas elaboradas, por exemplo, quando da ratificação da Convenção Americana. É também prioritária a reavaliação da posição do Estado Brasileiro quanto a cláusulas e procedimentos facultativos — destacando-se a premência do Brasil reconhecer a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como a urgência em aceitar os mecanismos de petição individual e comunicação interestatal previstos nos tratados já ratificados. Deve ainda o Estado brasileiro adotar medidas que assegurem eficácia aos direitos constantes nos instrumentos internacionais de proteção, como, por exemplo, no caso da Convenção contra a Tortura. A essas providências adicione-se a urgência do Brasil incorporar relevantes tratados internacionais ainda pendentes de ratificação, como o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Inobstante todas essas ações sejam essenciais para o completo alinhamento do país à causa dos direitos humanos, há que se reiterar que na experiência brasileira faz-se clara a relação entre o processo de democratização e a reinserção do Estado Brasileiro no cenário internacional de proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, percebe-se a dinâmica e a dialética da relação entre Democracia e Direitos Humanos(9), tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes tratados internacionais de direitos humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e do reforço do universo de direitos fundamentais por ele assegurado. Se a busca democrática não se atém apenas ao modo pelo qual o poder político é exercido, mas envolve também a forma pela qual direitos fundamentais são implementados(10), e manifesta a contribuição da sistemática internacional de proteção dos direitos humanos para o aperfeiçoamento do sistema de tutela desses direitos no Brasil. Nesse prisma, o aparato internacional permite intensificar as respostas jurídicas ante casos de violação de direitos humanos e, consequentemente, ao reforçar a sistemática de proteção de direitos, o aparato internacional permite o aperfeiçoamento do próprio regime democrático. Atente-se, assim, para o modo pelo qual os direitos humanos internacionais inovam a ordem jurídica brasileira, complementando e integrando o elenco de direitos nacionalmente consagrados e nele introduzindo novos direitos, até então não previstos pelo ordenamento jurídico interno.
Enfatize-se que a Constituição brasileira de 1988, como marco jurídico da institucionalização dos direitos humanos e da transição democrática no país, ineditamente, consagra o primado do respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica brasileira ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, exige uma nova interpretação de princípios tradicionais como a soberania nacional e a não-intervenção, impondo a flexibilização e relativização desses valores. Se para o Estado brasileiro a prevalência dos direitos humanos é princípio a reger o Brasil no cenário internacional, está-se consequentemente admitindo a concepção de que os direitos humanos constituem tema de legítima preocupação e interesse da comunidade internacional. Os direitos humanos, para a Carta de 1988, surgem como tema global.
O texto democrático ainda rompe com as Constituições anteriores ao estabelecer um regime jurídico diferenciado aplicável aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. À luz desse regime, os tratados de direitos humanos são incorporados automaticamente pelo Direito brasileiro e passam a apresentar status de norma constitucional, diversamente dos tratados tradicionais, os quais se sujeitam à sistemática da incorporação legislativa e detêm status hierárquico infra-constitucional. A Carta de 1988 acolhe, desse modo, um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados — um aplicável aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e o outro aplicável aos tratados tradicionais. Esse sistema misto se fundamenta na natureza especial dos tratados internacionais de direitos humanos que — distintamente dos tratados tradicionais que objetivam assegurar uma relação de equilíbrio e reciprocidade entre Estados pactuantes — priorizam a busca em assegurar a proteção da pessoa humana, até mesmo contra o próprio Estado pactuante.
Insista-se, a Constituição de 1988, por força do artigo 5º, parágrafos 1º e 2º, atribuiu aos direitos humanos internacionais natureza de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata. Essa conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional de 1988, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. Com a Carta democrática de 1988, a dignidade da pessoa humana, bem como os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro. A esse raciocínio se conjuga o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, particularmente das normas concernentes a direitos e garantias fundamentais, que hão de alcançar a maior carga de efetividade possível — este princípio vem a consolidar o alcance interpretativo que se propõe relativamente aos parágrafos do artigo 5º do texto.
A favor da natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais, adicione-se também o fato do processo de globalização ter implicado na abertura da Constituição à normação internacional. Tal abertura resultou na ampliação do bloco de constitucionalidade, que passou a incorporar preceitos enunciadores de direitos fundamentais que, embora decorrentes de fonte internacional, veiculam matéria e conteúdo de inegável natureza constitucional. Admitir o contrário traduziria o equívoco de consentir na existência de duas categorias diversas de direitos fundamentais — uma de status hierárquico constitucional e outra de status ordinário. Há que ser também afastada a frágil argumentação de que os direitos internacionais integrariam o universo impreciso e indefinido dos direitos implícitos, decorrentes do regime ou dos princípios adotados pela Constituição. Ainda que não explícitos no texto constitucional, os direitos internacionais são direitos "explicitáveis", bastando para tanto a menção aos dispositivos dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que demarcam um catálogo claro, preciso e definido de direitos. Em suma, todos esses argumentos se reúnem no sentido de endossar o regime constitucional privilegiado conferido aos tratados de proteção de direitos humanos — regime esse semelhante ao que é conferido aos demais direitos e garantias constitucionais.
Quanto ao impacto jurídico do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito brasileiro e por força do princípio da norma mais favorável à vítima — que assegura a prevalência da norma que melhor e mais eficazmente projeta os direitos humanos — os direitos internacionais apenas vêm a aprimorar e fortalecer, jamais a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. A sistemática internacional de proteção vem ainda a permitir a tutela, a supervisão e o monitoramento de direitos por organismos internacionais(11).
Embora incipiente no Brasil, verifica-se que a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos tem sido capaz de propor relevantes ações internacionais(12), invocando a atenção da comunidade internacional para a fiscalização e controle de sérios casos de violação de direitos humanos. No momento em que tais violações são submetidas à arena internacional, elas se tornam mais visíveis, salientes e públicas(13). Diante da publicidade de casos de violações de direitos humanos e de pressões internacionais, o Estado se vê "compelido" a prover justificações, o que tende a implicar em alterações na própria prática do Estado relativamente aos direitos humanos, permitindo, por vezes, um sensível avanço na forma pela qual esses direitos são nacionalmente respeitados e implementados(14). A ação internacional constitui, portanto, um importante fator para o fortalecimento da sistemática de implementação dos direitos humanos(15).
Seja em face da sistemática de monitoramento internacional que proporciona, seja em face do extenso universo de direitos que assegura, o Direito Internacional dos Direitos Humanos vem a instaurar o processo de redefinição do próprio conceito de cidadania, no âmbito brasileiro. O conceito de cidadania se vê, assim, alargado e ampliado, na medida em que passa a incluir não apenas direitos previstos no plano nacional, mas também direitos internacionalmente enunciados. A sistemática internacional de accountability vem ainda a integrar esse conceito renovado de cidadania, tendo em vista que, ao lado das garantias nacionais, são adicionadas garantias de natureza internacional. Consequentemente, o desconhecimento dos direitos e garantias internacionais importa no desconhecimento de parte substancial dos direitos da cidadania, por significar a privação do exercício de direitos acionáveis e defensáveis na arena internacional.
Hoje pode-se afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo e amplo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados.