A importância da luta pela redemocratização
do Brasil que culminou na CF/88
No final da década de 70, na passagem do
governo Geisel para o de Figueiredo, estava ficando claro que a ditadura estava
acabando. A palavra da moda era abertura, especialmente abertura política.
Vimos que os generais castelistas, como Geisel e Figueiredo, eram favoráveis à
abertura política. Mas seria um grave erro atribuir o fim do regime à boa
vontade democrática dos militares.
Na verdade, a ditadura estava afundando. Para
começar, a crise econômica: inflação, diminuição do crescimento econômico,
aumento da pobreza. Foi só Geisel abrandar a censura para que os escândalos de
corrupção no governo começassem a pipocar. Tudo isso tirava a confiança da
população no governo. Bastava ter eleição e pimba, o MDB ganhava mais votos do
que a Arena. No começo do regime, castrado pelas cassações, o MDB era uma
presença tímida. Praticamente só havia Arena no Brasil, Aos poucos, entretanto,
o MDB foi ampliando sua capacidade de fustigar a ditadura, Nele havia desde
liberais até comunistas, todos unidos com um propósito básico: acabar com o
regime militar, restaurar a democracia no Brasil.
Portanto, ao contrário do que disse a
propaganda oficial, a tal abertura política não foi resultado simplesmente da
boa vontade do governo. Foi o recuo de um regime acossado pela crise e atacado
por um povo que se organizava.
Em nenhum momento do regime a oposição
democrática se calou. Todavia, a partir de 1975, essa oposição atuava de outro
jeito. Não eram mais estudantes jogando pedras para enfrentar a polícia, como
nas memoráveis passeatas de 1968, nem eram meia dúzia de guerrilheiros
cutucando a onça blindada com vara curta. Agora, a luta contra o regime ainda
tinha o mesmo ardor, o mesmo idealismo, só que com maturidade, com substância.
O segredo era a mobilização da sociedade civil.
Sociedade civil não é o contrário de
sociedade militar. A sociedade civil se opõe ao Estado. Quem faz parte do
Estado? Os políticos, os juízes e tribunais, a administração pública, a
polícia, o Exército etc. As instituições da sociedade civil são organizações
como sindicatos, associações de moradores, grupos feministas, igrejas, comitês
de defesa de direitos humanos, sociedades ecológicas e culturais etc.
Para começar, a Igreja Católica passava por
um processo de grandes mudanças. Em 1964, ela jogou água benta nos tanques.
Agora, crescia a consciência de que ser cristão era ser também contra o pecado
da opressão social, contra o pecado de nada fazer diante da injustiça social;
ser solidário com os pobres; lutar por um mundo mais justo. Não tinha mais essa
de que "Deus quis que os pobres fossem submissos". Era a Teologia da
Libertação. A visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980, foi interpretada
como uma força para esse tipo de atitude de engajamento social dos católicos.
Enquanto apoiou o regime, a Igreja foi elogiada. Bastou que uma parte dela (o
chamado clero progressista) se voltasse contra as barbaridades do nosso
capitalismo selvagem, para que logo a acusassem de "fazer
politicagem". Grandes figuras, como D. Hélder Câmara, D. Evaristo Arns e
D. Pedro Casaldáliga, frei Betto e frei Leonardo Boff, defenderam os direitos
humanos, denunciaram as injustiças sociais, exigiram que o governo mudasse suas
atitudes. Organizada nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a população
católica ia se conscientizando. Descobria-se que o Evangelho não era uma
mensagem para manter escravos, mas justamente o contrário, uma boa-nova de
libertação, de libertação de toda a opressão, incluindo a opressão social. O
homem deve ganhar o pão com o suor do seu
rosto e, portanto, para que todos os que produzem o pão possam ter um pedaço
justo desse pão, é preciso suar o rosto para transformar a sociedade no sentido
da justiça cristã. E a justiça cristã não é apenas a da caridade, mas a do
respeito aos direitos de todos. Não estamos fazendo propaganda da Teologia da
Libertação, mas exprimindo algumas de suas idéias. Essa novidade seria
importantíssima para compreender o Brasil contemporâneo: nos anos 80, diversos
movimentos de operários e camponeses ergueram sua voz para exigir direitos. Um
estudo de suas origens revelará que muitos deles nasceram das CPT (Comissões
Pastorais da Terra) e das CEBs católicas.
O próprio movimento estudantil universitário
renascia. Nas principais universidades do Brasil, o pessoal reorganizava as
entidades representativas (Centros Acadêmicos, Diretórios Acadêmicos,
Diretórios Centrais dos Estudantes). Esta geração do final dos anos 70 e começo
dos 80 mostraria que a política ainda corria no sangue dos estudantes. Mas as
coisas não eram fáceis. As faculdades ainda estavam cheias de agentes secretos
do SNI infiltrados. E a tentativa de refazer a UNE, através de um encontro de
estudantes na PUC-SP em 1977, foi desfeita com brutalidade pela polícia, que
bateu tanto que uma menina ficou cega. Mesmo assim, em 1979, num Congresso
emocionante na bela Salvador, a UNE estava recriada.
Entidades como a SBPC (Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência), a OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil) - esta sob a liderança do dr. Raymundo Faoro - e intelectuais de
prestígio se manifestavam contra o regime. A imprensa alternativa, representada
pelos jornais O Pasquim, Movimento e Opinião, não descansava. A censura tinha
sido abrandada no final do governo Geisel e, portanto, já havia um espaço para
falar de coisas novas na política. Cada número novo de um desses jornais era
lido com voracidade.
Em 1975, foi criado o MFA (Movimento
Feminino pela Anistia), para que os presos políticos fossem soltos, os
exilados pudessem voltar à pátria e os cassados recebessem justiça. Em 1978,
foi criado o CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia). 0 Brasil inteiro
repudiava a tortura e a arbitrariedade. A saudosa Elis Regina emocionaria o
país cantando o hino da anistia; O Bêbado e o Equilibrista. Outros cantores
populares, como Chico Buarque e Milton Nascimento, compunham músicas com
críticas sutis ao regime militar.
Como você vê, a oposição estava articulada:
jornalistas, MDB, estudantes, Igreja Católica, intelectuais, movimento pela
anistia. Mas as coisas não seriam tão fáceis assim.
A extrema direita respondeu com fogo. D.
Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu (Rio de Janeiro), foi seqüestrado e
espancado. Bombas explodiram na ABI (Associação Brasileira de Imprensa),
e na Editora Civilização Brasileira. No mesmo ano (1976), o DOI-CODI invadiu a
tal casa na Lapa e massacrou os ocupantes, todos da direção do PC do B, como já
foi dito. Assim, as forças retrógradas deixavam claro que não aceitariam
qualquer avanço democrático.
A situação ficou tensa. As forças
democráticas avançavam, mas a direita replicava: 0 governo, irritado, se
confundia, reprimia, vacilava. Era o impasse. Para onde iria o Brasil? A
extrema direita teria mesmo o poder de barrar o povo? Quem decidiria o nosso
futuro?
Os dias de medo pareciam eternos. Apesar de
toda a articulação da sociedade, o regime autoritário dava a impressão de ser
capaz de resistir por muito tempo. Seria uma muralha indestrutível? A violência
talvez não terminasse nunca. Quem teria a capacidade de mudar a correlação de
forças? Quem seria capaz de abalar decisivamente o regime? Haveria algum
movimento social capaz de provocar a virada decisiva? As pessoas se
entreolhavam angustiadas; e agora?
Nasce
o Partido dos Trabalhadores
Saab-Scania, multinacional sueca de salários
brasileiros localizada em São Bernardo do Campo (São Paulo). São 7 horas da
manhã. 13 de maio de 1978, sexta-feira. Os diretores e executivos observam e
não acreditam no que vêem: os operários estão ali, bateram cartão de ponto, mas
nada funciona. Braços cruzados, máquinas paradas. E sem o peão, nada existe. A
greve. Apesar da rígida proibição da ditadura, os trabalhadores pararam. E dali
se espalharam e paralisaram o cinturão industrial do ABC Paulista.
Foi uma loucura. Todo mundo ficou perplexo.
Desde o governo até a esquerda tradicional, incapazes de aceitar que a classe
trabalhadora pudesse, por conta própria, resolver seus problemas.
Na liderança, uma nova cabeça no país, que
não estava ligada a nenhum partido, a nenhum grupelho de esquerda: Luís Inácio
Lula da Silva, o Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo
do Campo. Filho de miseráveis camponeses nordestinos que emigraram para São
Paulo, Lula trabalhava desde criança. Bom operário, torneiro-mecânico, perdeu o
dedo num acidente de trabalho tão comum no Brasil. Na adolescência, não ligava
muito para política nem para sindicato. Queria mesmo era jogar bola e namorar.
Amadureceu, começou a tomar consciência das coisas e entrou para o sindicato,
até ser eleito presidente. Assim, iria se tornar o mais influente líder
sindical operário de toda a história do Brasil.
Depois do susto da greve de 1978, o governo
respondeu. Na greve de 1979, o presidente já era Figueiredo. O sindicato de São
Bernardo sofreu intervenção. A polícia federal ocupou a sede. E quem precisava
do prédio? Nas assembléias, compareciam dezenas de milhares de metalúrgicos.
O Brasil inteiro explodiu em greves. Todo
mundo queria de volta o que a inflação tinha levado para os patrões. Categorias
que antes de 1964 jamais teriam organizado um movimento (afinal, eram de
"classe média"), como professores, médicos e engenheiros, descobriram
a necessidade de também participar do sindicalismo combativo.
A ditadura reprimia sem dó. O operário Santo
Dias, ativista sindical, foi assassinado pela PM na rua. Era preciso deixar
claro que novas rebeldias não seriam toleradas. A fábrica da Fiat (Minas
Gerais) foi invadida pela PM com cães amestrados. Os trabalhadores deviam se
calar!
Pois não se intimidaram. Contra os abusos dos
patrões, novas greves no ABC, em 1980. A ditadura mostrava, mais uma vez, que
estava sempre do lado da burguesia.
Uma operação de guerra foi montada. Guerra
contra trabalhadores desarmados. O comandante do II Exército planejou as ações
bélicas. Mobilizaram-se homens, armas, recursos. A polícia federal chefiada
pelo dr. Romeu Tuma, o DOPS e o DOI-CODI prenderam Lula e mais 15 dirigentes
sindicais. Ficaram incomunicáveis.
Esperavam que, prendendo a liderança,
acabariam as greves. Engano. Esse era um novo sindicalismo. Organizado pela
base, sem chefes supremos a decidir tudo. Cada peão era um responsável. A hidra
de 250 mil cabeças.
A greve continuava. Proibida pelo governo,
decretada ilegal pelo Tribunal do Trabalho. Mais prisões de políticos,
advogados e sindicalistas. A televisão só entrevistava ministro, patrão,
policial e pelego, para dar a impressão de que o Brasil era contra. Mas o povo
colhia donativos nas ruas para ajudar as famílias dos operários. Provocadores
da polícia destruíram lojas, para criar a fama de que greve é baderna.
Jornalistas os fotografaram e desmascararam a armação.
O Exército deu, então, o ultimato. As ruas de
São Bernardo do Campo foram ocupadas por blindados, soldados de fuzis
automáticos, ninhos de metralhadoras. Helicópteros equipados com bombas
patrulhavam a cidade. Estava terminantemente proibido fazer assembléia
operária.
Pois uma multidão de 120 mil pessoas desafiou
o poder. Cabeças erguidas, fona da verdade no coração. Massacrá-los seria dar
início a uma guerra civil.
No dia seguinte, não havia mais soldados em
São Bernardo. A luta da classe operária havia derrotado a ditadura.